a sandália nova branca com dedos que se refestelam do lado de fora como crianças que sabem o verão que vem de repente a chuva mingua os planos da calça jeans com sandália de dedos uma combinação entre-estações para não se sentir nem tão lá nem tão cá os dedos curvados corcundas como crianças tristes que sabem o toró que se aproxima as unhas recém-cortadas que planejaram se mostrar sobre a cadeira de rodinhas que nada a água inundou a sexta da janela os bambus se movem muito chegam a parecer desesperados as folhas penduradas são cabelos colados que gritam novas rugas onde nada havia
um enorme rabo de baleia cruzaria a sala nesse momento sem barulho algum o bicho afundaria nas tábuas corridas e sumiria sem que percebêssemos no sofá a falta de assunto o que eu queria mas não te conto é abraçar a baleia mergulhar com ela sinto um tédio pavoroso desses dias de água parada acumulando mosquito apesar da agitação dos dias da exaustão dos dias o corpo que chega exausto em casa com a mão esticada em busca de um copo d’água a urgência de seguir para uma terça ou quarta boia e a vontade é de abraçar um enorme rabo de baleia seguir com ela
nessa noite, digo, em quase todas tenho um sonho horrível como se acordasse fosse até a pia do banheiro lavasse o rosto e ao enfrentar-me ali de cabelos revoltos os dentes cairiam um por um dominós em série tentaria em vão segurar as pequenas peças com as mãos malabaristas, desastradas que não conseguiriam deter a porcelana sugada com força total pelo ralo meus dentes pelo ralo, os brincos de marfim que vovó separou pra mim
tenho um medo terrível de cegar, ela me disse, e desligou o telefone se abraçando debaixo das cobertas. fazia frio demais para se levantar agora, lavar as mãos, esfregá-las com álcool e voltar para a cama. fica na dúvida se ao acordar será capaz de abrir os olhos e enxergar o relógio por saber secretamente que coçou os olhos com os dedos. pode jurar que não. ontem, depois de ontem, depois de ter passado a tarde com aquelas crianças na dúvida se a viam pouco ou nada, com uma roupa escolhida especialmente para a ocasião, percebeu que, afinal, ninguém poderia ver a tal roupa. até que um menino apontou: olha só a loura, e ela percebeu que, ao contrário do que pensava, talvez a vissem um pouco que fosse. o rapaz usa uma corrente dourada e tira o boné para sair mais bonito na foto. a menina bem novinha tem as unhas roxas metalizadas e quer ser atriz quando crescer. ela é quem mais vê, poderia estudar em uma escola normal, mas tem uma doença degenerativa, aos poucos vai enxergar cada vez menos, e todos sabem disso, saberá ela também? decide que não vai sentir pena, ninguém aqui está pedindo pena, amanhã ao acordar também não vai enxergar nada.
M. estava na sala sozinha, sem luz. acabou a energia de manhã, o pior é ficar sem ar condicionado, ela diz. procura na mesa uns papéis, checa o meu nome, pergunta se é esse mesmo, me entrega a autorização. vamos ter que levar o documento até outro departamento. M. caminha ao meu lado, subimos uma escada de mármore, passamos por um vão, no alto uma menina caminha bem rápido, não faz questão do corrimão para subir os degraus, sequer encosta na parede, sobe e sabe que estamos em sua frente, faz curvas, corre. quando me aproximo, vejo as duas pupilas azuis rondando, fora de órbita. fico levemente tonta. perto dela há uma folha que diz: risco cirúrgico. outra mais adiante repete os dizeres. é a sala do oftalmologista, M. diz, e pergunto o que aquilo quer dizer, o risco, no que ela responde longamente, sem chegar a uma explicação precisa. de repente sinto vontade de coçar os olhos, ergo as mãos mas me reprimo, já encostei nas paredes, na cadeira, no corrimão, desse jeito é possível que eu tenha que me acostumar a subir os degraus sem ajuda. chegamos enfim ao departamento, meus olhos coçando, digo à sra. C. que gostaria, por gentileza, de conversar com alguns... pacientes. nesse momento, sei bem que não escolhi a palavra precisa, mas de fato não saberia qual escolher, talvez cegos, deficientes, talvez tudo isso soasse pior. a sra. C. me responde brava, diz que ali não há pacientes, há alunos. você não vai poder conversar com os nossos alunos, não hoje.
esses dias de tédio em que se tem tempo – tempo só se arranja quando não se tem quando sobra desse jeito a gente repete os assuntos o ônibus chega rápido e os trajetos ficam curtos – de repente readaptar-se à própria casa como foi lá? bom rever os gigantes, os mínimos dedicar a eles igual dose de carinho ou indiferença usar as roupas que ficaram meses dobradas no armário com cheiro de sachê nessas tardes sem compromisso esticadas com rolo de macarrão tudo é longo nada dura