pra não ficar na gaveta
sexta-feira, dezembro 29, 2006
notas sobre botões
De início, as rosas não têm cheiro. Repousam na água e ali ficam, como qualquer outro objeto, cama, porta-retrato, abajur, livros – são inesgotáveis. Troca-se a água, arranca uma folha que apodreceu prematura, ou nem isso: permite que vivam sozinhas, ajeitando-se como bem entendem na ordem natural que segue além das nossas mãos. As flores sabem instintivamente que devem apontar para o sol, e os botões se abrem em dezenas de camadas, inflam.
Só depois de alguns dias, quatro ou cinco, elas começam a definhar, envergando-se. As folhas perdem a vivacidade, confundem-se com arbustos, substituem o verde por cinza, cor amorfa e sem temperatura. Impossível dizer que ainda têm calor; a cor desbota, a textura das pontas das pétalas resseca e se desfaz nas mãos. O estranho, porém, é que quando as rosas pendem, pedintes, suspensas apenas pelo cabo, elas exalam perfume.
sábado, dezembro 23, 2006
marcelina nunca fez aula de esgrima
tem uma máquina de costura
copos de plástico
e uma mesa com pés assimétricos
~
aos domingos
marcelina vai ao parque
compra um algodão doce
é pra minha sobrinha
marcelina não tem sobrinhas
nem irmãs
~
quase nunca
marcelina recebe visitas
a última vez era um homem
é o carteiro, pode entrar?
marcelina mordeu o dedo
engasgou
não tem ninguém em casa
terça-feira, dezembro 19, 2006
nove e quinze da manhã
banquinho de madeira
estante de sociologia
ordem alfabética pelo sobrenome do autor
qual letra vem primeiro
agá ou jota?
a visão lambendo lombadas
turva
- você já desceu o relatório?
nunca se deve interromper um bocejo.
terça-feira, dezembro 12, 2006
ele chega e senta e desliza
as mãos pelo meu rosto, eu
sinto cócegas, nariz franzido
estou fingindo dormir só
para que ele me observe
sábado, dezembro 09, 2006
durante todo o percurso de volta para casa
fiz questão de não puxar assunto
hoje prefiro vê-la angustiada
soltando ruídos, tossindo
expirando
a perguntar como ela está
do contrário, me lança
agulhas, objetos pontiagudos que me atingem com tanta força
que me desalinham, tropeço –
a gente se conhece, se brinca, se ri
se comemora, se aponta os dedos faz tanto tempo
mas agora percebo:
ela nunca me contou
o seu nome verdadeiro
quarta-feira, dezembro 06, 2006
puxa a manga da camisa
levanta o braço direito
olha a tatuagem
que eu fiz:
três marias
minha mãe minha irmã e
eu
não sei se compreendo, saca
um maço, isqueiro zippo
põe a mão na cintura
e dá uma
longa
tragada
não agüento mais isso aqui
amanhã eu vou
embora
todo dia bianca diz que amanhã vai embora.
sexta-feira, dezembro 01, 2006
eu sabia
que mesmo depois que me
despedisse e fechasse
a porta
e descesse todos
os degraus troteando
a escada em espiral
e entrasse no táxi, boa-noite
siga reto, por favor, à
direita, o troco, obrigada
e acenasse para o porteiro
mesmo depois que eu apertasse
o botão do elevador, procurando
o chaveiro na bolsa
abrisse a porta de casa
tirasse os sapatos, os brincos
escovasse os dentes, os cabelos
mesmo depois que eu
dormisse e sonhasse e até a hora
em que acordasse, você ainda estaria
com os olhos
presos
à porta.
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