pra não ficar na gaveta

quinta-feira, dezembro 06, 2007

 

Espécie de flor

Era quarta-feira fora de época, um dia quente demais para início de primavera. O horário das três da tarde era a volta dos empresários do almoço, o curso de inglês das crianças, a consulta no dentista. E ele mal tinha acordado. Saiu do apartamento no Humaitá com o pescoço ainda quente, tomou só um copo d’água e vestiu moletom e calça jeans, não gostava de comer nada assim tão cedo. Desceu de elevador e logo se arrependeu pelo casaco no ar abafado.

Mal percebeu que caminhava em direção à Cobal quando atravessou o portão. Gostava de se perder pelas ruas de Botafogo, mesmo sabendo que não fugia do eixo Voluntários, o rio que corta o bairro em tons desbotados. Ele sabia, Botafogo é cinza.

Hoje é dia de feira, os feirantes anunciavam. As donas paravam, davam uma olhada, eles insistiam, a fruta tá uma delícia, fresquinha, quer experimentar. Nem sempre elas experimentam. Ele se aproximou, alguma coisa chamou sua atenção, e não era bem uma fruta.

Uma alcachofra. Vegetal com formato de flor, só que uma flor bruta, parece pré-histórica, até as cores são jurássicas. Imaginou a primeira pessoa a experimentar uma alcachofra, mordendo-a inteira, até descobrir que a carne é fininha, um detalhe, está escondida, não mata a fome. E para alcançar o coração da alcachofra é uma dificuldade. O coração fica debaixo das pétalas, debaixo de uma espécie de capim grosso que irrita a língua.

Segurou a alcachofra absorto. Entregou uma nota de dez reais, é só isso. Era a primeira vez que comprava uma alcachofra, ele que nunca sentiu uma empatia especial, que inclusive rejeitou em jantares, achava sem gosto, uma coisa boba. De repente ficou constrangido: algumas pessoas soltavam risinhos. Era a paixão com que ele segurava a alcachofra.

Quase assim como se fosse um filho. Ou a mulher amada. Ele abraçava a alcachofra contra o peito, até dispensou o saco plástico, jogou as moedas no bolso e alisou as pétalas de cima. Era um cetro, um buquê, uma forma exótica da natureza. Tomou o caminho de volta pra casa, mal podia se segurar da inspiração repentina, e pensou onde no apartamento poderia esconder jóia tão rara.

Comentários:
alcachofra é como uma flor de lotus, só que grave e vulgar. encerra mistério análogo, no entanto.

bem bonito o texto.
 
Há primeiros contatos que são mágicos.
Abraço!

Ada

adalima@gmail.com
www.meninagauche.blogger.com.br
 
eita, me deixou com volúpia por alcachofras!
beijo
 
alice: gostei dos seus textos. estou à frente de um projeto literário e gostaria de ter um contato seu para conversamos.

se houver interesse... gab_marchi@msn.com

abraços
 
a alcachofra eh o botao. a flor soh ve quem nao colhe e nao come.

sempre boas suas dobraduras!!!
 
eu me apaixonei por uma maçã verde um dia.
 
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