Por você, eu não me incomodaria em ficar sempre por perto, de bico fechado, me oferecendo para ventilar, vai mais um cafezinho, se for preciso limpo o chão. Não. Amélia demais. Por você eu viro só riso, visto as roupas mais lindas pra impressionar, ajeito o penteado em movimentos estudados, elegante assim. Não. Por você sou desgrenhada, caninos à mostra, vestido de fendas, risada rouca, um pouco amarga. Já sei: por você eu sou carnaval o ano inteiro, fadinha muito mansa ou foliã enlouquecida, mímico ou palhaço de nariz vermelho. Confetes nos cabelos.
Ele segura minhas clavículas e puxa com muita força, como se fosse me arrancar pelos ganchos, como se os meus ossos fossem uma arquitetura que ele precisa dominar por completo. A mão dele aperta a minha pele, ele reclama desse tecido que sobra, ele me quer sempre magra, ele gosta de mim com pontas.
Depois parte sem dizer uma palavra. Assim como é violento e não gosta de conversa, ele também é frágil. Escapa sem que eu perceba, fecha a porta em movimentos inaudíveis, e nunca mais aparece. Não sei seu telefone, onde mora, se tem amigos. Quando nos encontramos, não registro nenhuma ordem coerente para depois seguir os passos, como uma beata, voltando para o mesmo lugar, na mesma hora, com a mesma roupa.
Assim que ele se vai, sinto que estou acordando de um sono estranho. Acendo todas as luzes do apartamento, com medo de escuro, e visto casacos. A boca roxa de frio. Começa uma tremedeira, perco o apetite, tenho vontade de passar a semana inteira espalhada pelo carpete sem falar com mais ninguém.
Assim que ele se vai, inicio uma busca apurada. Procuro atrás das estantes, na cômoda, atrás do papel de parede, embaixo do piso, entre os móveis, no cheiro das roupas, debaixo das unhas. Qualquer indício de que aquilo foi real me serve, qualquer marca no corpo é motivo para exibir pelas ruas como troféu, como jóia preciosa.
E andar por aí de short, camisas sem manga e cabelos presos, mostrando para todos os olhos. Adoro quando me perguntam sobre as manchas na pele, apontando o indicador cheio de sobrancelhas e cenhos, e respondo com um sorriso. Sabe o que é, devo ter batido em algum lugar e esquecido, entende. É que sou muito distraída.
As pessoas só querem uma história pra contar. Voltando para casa, no ônibus amarelo, vejo o dia ameaçando seus primeiros movimentos. É sábado. São sete da manhã, e pela janela o Aterro do Flamengo corre em qualquer direção -- estou tão cansada. Vinda da noite, a cabeça pulsa quando a roda embica num buraco. Os olhinhos são como pequenos filhotes, desprotegidos, abrem dolorosos mas logo piscam, num alívio de pálpebras fechadas. É que não suporto essa falta de assunto, e aqui penso que você talvez me entenda, não suporto essa cumplicidade, tanto silêncio, umas vontades. Ponho o rosto para fora do vidro e acho muita graça quando o vento escorre nas bochechas e nos cabelos, num vôo desengonçado de pássaro. Penso numa porção de coisas, em andorinhas sobre pontes, em meu medo secreto de pombos, em pernas dispersas pela cidade, só que isso eu não te conto, não. Invento brincadeiras com os dedos caminhando e circundando a estampa do vestido, acompanhando um estranho raciocínio, mas me censuro outra vez: isso não faz sentido, e você vai me achar louca. Vida pacata. E se eu pelo menos tivesse uma grande novela pra contar, mocinhas e bandidos, trama cheia de detalhes amarradinhos, para que quando eu entrasse no prédio o porteiro não me olhasse assim, torto. Uma cara de que eu sou tão nova e volto pra casa numa hora dessas, imagine, onde já se viu, já é de manhã, minha cara. Sorrio, insegura, oi. Mas se existisse história pra narrar, aí seria diferente. Voltaria muito prosa, a respiração compassada, os ombros naturais, bom dia Seu Valfredo, e não olharia para trás quando o portão batesse. Não haveria essa quietude, esse medo de pombos, esse enorme apartamento sem móveis.