Um filé com arroz à piamontese, por favor, e uma tônica. Papai pediu o polvo com legumes, como sempre. Viemos aqui religiosamente todos os domingos, neste restaurante escuro, apesar da luz transbordante das duas da tarde que escapa entre as frestas da cortina. Não é mal, o lugar. É verdade que me incomoda o chão de carpete e as paredes em tons de vinho, é verdade que me incomoda também que os pratos venham sempre frios, ou trocados, ou que o meu venha muito antes do pedido do papai. Continuamos voltando para cá mesmo assim, mesmo depois da crítica durante o cafezinho. Ele traz a xícara à boca e diz: o atendimento daqui está cada vez pior. Nunca comi um polvo tão duro. Eles deviam trocar o chefe. Depois beberica o café (muito aguado) e assina o cheque.
Há também um pianista triste ao fundo. Ele toca três músicas, olha para as mesas, sabe que ninguém o observa, e volta para si menor. I´ve got you under my skin de repente soa fora do tom, ou foi uma nota que escapou, o pianista sempre contorna as notas que escapam. Bom mesmo, eu penso, seria se ele parasse antes de terminar o compasso, assim, de súbito, para que os ali presentes reparassem algo de estranho e suspendessem a mordida. Pedir que percebam o pianista no salão chega a ser um exagero.
Papai não pergunta muito. Conta sobre a última viagem, monossilábico, foi boa, desta vez ficou num apartamento ótimo em Paris, amplo e asseado. O meu trabalho vai bem, ele sabe que procuro outras coisas, que não me comove a idéia de passar o resto da vida no escritório sem vista para o céu. Que eu não gostaria de continuar diminuído pela hierarquia, ou gigante quando peço que me tragam mais café. E que, apesar de todas estas coisas não ditas, papai talvez não saiba, ou até saiba muito melhor do que eu, que me falta força de vontade para um dia vestir uma gravata de outra cor, ou pedir um outro prato, ou aplaudir o pianista quando ele toca a última música do repertório.
postado por Alice Sant'Anna #
4:23 PM