para tia Marciacabelo não se joga fora
a gente corta e enterra e espera
nascer árvore
as plantas da varanda só crescem
quando a gente canta
lágrima se congela
pra derramar na hora certa
o beijo da mãe
se guarda no bolso
uma caixa cauchemar pra colecionar
pesadelos
e despejar na janela
a gente amassa miolo de pão
nas gengivas
para fingir que já envelheceu
era verão e nós éramos quatro. a porta da sala tinha a moldura pintada de amarelo e usávamos camisas dos nossas irmãos mais velhos. a gente não tinha barba. tudo era mais colorido, ou estou sendo memorialista, tudo era mais engraçado, a gente sentava na casinha das crianças no recreio, e se sentia burro-velho comendo goiabainha só porque já tínhamos aula de francês no primeiro tempo. hoje, os quatro no sofá, quebrando alguma coisa que não se diz. um vaso de begônias sobre a mesa, sua mão treme, o cartão diz palavras impróprias.
sabe, as coisas não mudam quase nada. até hoje é como uma faca lembrar do dia na cachoeira. queria deixar todos à vontade, queria mesmo é que curtissem à beça, e que não ficassem com medo da água cortante (já era inverno). eu tinha que ser mais forte que todo mundo. era como andar de avião com a prima menor: devia ser a adulta e dizer que turbulências são cócegas. então lá estava, na pose de gente grande – quando senti alguma coisa estranha. sabia que não se tratava de um novo formato de pedrinha, mas seria proibido checar o nome da coisa: podia assustar e aí nunca mais.
era uma lata. a gente foi descobrir quando cortou o pé dela, aquele sangue todo na água, dissolvia de um jeito diferente, não estancava, todos em roda vendo o pé aberto, o vermelho se espraiando.
nesse dia, quebrei um segredo fundamental. impossível grudar as peças da cerâmica da avó, o vaso estraçalhado. ficou um incômodo, o silêncio na mesa de jantar, o corte profundo que levou cinco pontos no hospital da cidadezinha mais próxima. a gente não sabia, o sol do inverno demora a esquentar.
De repente, mudei de idéia. Fiquei olhando praquela cara de menino, os olhos muito grandes e um risco que alguns chamam de boca. Ele não dizia nada. Esperava a minha resposta com as sobrancelhas arqueadas, quase arquitetônicas. Aposto que ensaiou em frente ao espelho. Ele era do tipo que ensaiava qualquer coisa em frente ao espelho, até a voz ao atender ao telefone. Pausa de cinco, sete segundos: alô. Os recados deixados em secretárias eletrônicas eram certeiros. Ele escrevia no papel. Caso contrário, balbuciava uma palavra e desligava logo em seguida, com profundo arrependimento. Eu também já fui assim. Mas hoje sou forte, boy. Hoje eu sou.
A casa dele não combinava. Sentei na poltrona e imaginei um salão branco, branco mesmo, daquele que ofusca. Ele estava de calça tweed e gola role e me servia uma taça de Martini seco, com azeitona dentro. Já eu vestia um longo decotado nas costas, com o braço apoiado no encosto do sofá. A gente brindava, cheers darlin’, e depois ria demais, a marca de batom no copo. Ele ligava o som, de preferência um Coltrane, sentava ao meu lado e me olhava fixamente. Após um gole, a taça aparecia vazia sobre a mesa.
Achei que estava deixando o menino entediado. Disse que precisava dar uma passada no banheiro, me mostre onde fica, boy. Segunda porta à esquerda. Fiquei alguns minutos sentada no vaso, hipnotizada pelos sapatos vermelhos. Talvez muito arrumados para a ocasião. É pena, eu sei, esperava uma outra atmosfera. Nada de salão branco com grandes bolas decorativas. Nada de calça tweed, nem Martini. Je suis desolée.
Quando saí do corredor, o menino me esperava de pé em seu suéter. As mãos nos bolsos da calça. O nervosismo estampado. Então, vamos? Ele falou sem jeito, feito os meninos de 17 anos que colecionam peixes em aquário. Me veio um branco total. Não me lembrava mais o motivo daquela visita, o que diabos eu estava fazendo na casa do menino, de onde nos conhecíamos, será que ele esperava que eu lecionasse francês e literatura?
Recolhi a minha bolsa de paetês no sofá e lhe dei um beijo na bochecha. Preciso ir. Me leve até a porta, boy. Cara de pastel, mané, bocó, gente que não come abobrinha. Vamos, boy, não seja mal educado e me leve até a porta. Sorri doce e cinicamente. Tchauzinho pelo vidro do elevador. Não suporto essa acne dos rapazes. Adeus, boy.
(01/08/2005)
E no telefone a sua voz chega ainda acordando, tanta manhã que faz. Falamos em projetos, presentes, viagens, tanta coisa. Depois disso, dormi sono demorado, daqueles que a gente pensa e lembra e quer, mas o danado do olho não fecha. A cabeça teima em futurar acontecimentos que ainda não aconteceram, sentimentos e falas, e já eu fico atordoada de vontades, trocando de travesseiros a todo tempo. Imagino casa sem parede, mundo sem distância, tempo sem calendário, e o sono me acorda: deixa de pensar besteira, menina. Tenho dessas coisas desde pequena, de querer andar pelas paredes e sentar no ventilador de teto – ainda nessa época a gravidade não tinha força nenhuma –, mas o doutor me olhava de rabo de olho. Mamãe não gosta de filha dela pensando pensamento mal pensado, mas agora não tenho mais, prometo, passou. Mas por que o sol e a lua não aparecem juntos? Por que não posso ficar acordada? Ah, essas coisas de-lembrar. Só que já faz noite funda e tenho medo de susto, então apago a luz e fecho os olhos bem fechados. Agora não penso mais, palavra minha que fico bem quieta. Quieta feito planta. Quieta feito cômoda. Quieta feito coisa que não barulha.
(Nova Zelândia, 13/11/04)