pra não ficar na gaveta

segunda-feira, dezembro 31, 2007

 

puerto madero

caminho compenetrada
para não quebrar o silêncio
das construções

faz frio em puerto madero
e por pouco não te comprei
um postal

queria descrever a paixão
com que meu avô apontava
os guindastes
tímidos por causa do inverno

queria descrever
uma senhora de olhos duros
que vendia argolas para soprar
bolhas de sabão

foi só depois que notei:
minhas fotografias revelam apenas monumentos

terça-feira, dezembro 18, 2007

 

a vizinha

espichava nos oito anos sobre um patinete prateado
estava escuro e me proibiram de sair de casa
eu dava voltas no hall

a porta da frente era gigante
maior que o prédio de onze andares

quando ficava de costas sentia
um frio no pescoço
como se alguém soprasse
para eu ir mais veloz

houve um dia
em que não entendi homens enormes
carregando uma caixa de madeira
enquanto eu brincava
com o espelho do elevador

a vizinha não penteava os cabelos
não levava amigos para casa
nem ouvia música

a vizinha era tão quieta
que parecia andar de meias
até no verão

quarta-feira, dezembro 12, 2007

 

diálogo de peixes

nara tem um aquário
redondo no centro da mesa
em vez de uma fruteira
ou um abajur
nara gosta de assistir
à conversa dos peixes.
outro dia reclamavam
do calor e nara
foi para o chuveiro
se refrescar de madrugada
é um péssimo hábito
o peixe vermelho disse
dormir de cabelos molhados

quinta-feira, dezembro 06, 2007

 

Espécie de flor

Era quarta-feira fora de época, um dia quente demais para início de primavera. O horário das três da tarde era a volta dos empresários do almoço, o curso de inglês das crianças, a consulta no dentista. E ele mal tinha acordado. Saiu do apartamento no Humaitá com o pescoço ainda quente, tomou só um copo d’água e vestiu moletom e calça jeans, não gostava de comer nada assim tão cedo. Desceu de elevador e logo se arrependeu pelo casaco no ar abafado.

Mal percebeu que caminhava em direção à Cobal quando atravessou o portão. Gostava de se perder pelas ruas de Botafogo, mesmo sabendo que não fugia do eixo Voluntários, o rio que corta o bairro em tons desbotados. Ele sabia, Botafogo é cinza.

Hoje é dia de feira, os feirantes anunciavam. As donas paravam, davam uma olhada, eles insistiam, a fruta tá uma delícia, fresquinha, quer experimentar. Nem sempre elas experimentam. Ele se aproximou, alguma coisa chamou sua atenção, e não era bem uma fruta.

Uma alcachofra. Vegetal com formato de flor, só que uma flor bruta, parece pré-histórica, até as cores são jurássicas. Imaginou a primeira pessoa a experimentar uma alcachofra, mordendo-a inteira, até descobrir que a carne é fininha, um detalhe, está escondida, não mata a fome. E para alcançar o coração da alcachofra é uma dificuldade. O coração fica debaixo das pétalas, debaixo de uma espécie de capim grosso que irrita a língua.

Segurou a alcachofra absorto. Entregou uma nota de dez reais, é só isso. Era a primeira vez que comprava uma alcachofra, ele que nunca sentiu uma empatia especial, que inclusive rejeitou em jantares, achava sem gosto, uma coisa boba. De repente ficou constrangido: algumas pessoas soltavam risinhos. Era a paixão com que ele segurava a alcachofra.

Quase assim como se fosse um filho. Ou a mulher amada. Ele abraçava a alcachofra contra o peito, até dispensou o saco plástico, jogou as moedas no bolso e alisou as pétalas de cima. Era um cetro, um buquê, uma forma exótica da natureza. Tomou o caminho de volta pra casa, mal podia se segurar da inspiração repentina, e pensou onde no apartamento poderia esconder jóia tão rara.

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