a primavera não se dilui
nem mesmo através
da cortina de pano
inútil essa tarde
de quarta ou quinta-feira? você
com olhos de sono
quinquilharias orientais
chão de taco
parece até feriado
em outro país
o gato me olha sonolento,
perto dele nem sei quem
se arrepia mais: eu
ou ele, com as retinas
grudadas no espelho: ele
em mim, enquanto me
curvo para tirar os
brincos, já é cedo e
o gato se assusta quando
olho cara a cara, desafio
na contramão, enfrento
os bigodes mas ele
se esquiva, orelhas
dispersas feito radares
rondando, não: atentos
na visão panorâmica,
o gato finge concentração.
e se seguro o ar por muito tempo é capaz
de perder a respiração
agora me despeço como quem segue
em viagem, passageiros a bordo
de um enorme vagão. Aceno na janela
e prometo que telefono
que volto nas férias de verão
que sinto sua falta após as refeições.
Já você não se preocupa
se me convence, de pé
na plataforma sem levantar
lencinho ou suspeita
de lágrima
uma vez me disseram
que a gente pode esquecer de
tudo, tudo mesmo. Se me esqueço
da língua materna, deixo de sentir
saudades também?
pássaros migrando em bando
para o sul
você
acompanha o vôo com o dedo indicador
às vezes fica tão imerso que parece
voar também
meditação:
é quinta-feira bem cedo, feriado dos santos
e nos bancos da frente os adultos
ouvem rádio, conversam
você é novo demais para dirigir ou
ler jornal ou saber quanto custa o salário mínimo
tudo isso é caricatura
quando se está amolecendo
o dente de leite
suspenso por um fio
cordão umbilical
que de repente se desprende e aquele susto: mãe!
na fazenda tem ovo quente, rocambole de goiabada
ponte que cruza o rio, mosquito às cinco da tarde
quarto com fantasma dos bisavós e escorpião
travesseiro de macela, meias de lã, vaga-lume
e céu azul.
de novecentos e vinte e cinco
rolos de filme, alguns clichês: françoise
arruma as malas para vir me visitar
em paris, diz que gosta daqui só no inverno
no verão fica quente demais e os pés
incham. curativo nos dedos
um beijinho que sara, françoise
carrega a sua câmera por todos os cafés
da cidade, pede o menu e sorrateira vai
ao banheiro, grande admiradora
de azulejos e sabonetes. fotografa
também o croque madame, já na mesa
quando ela retorna, fura a gema
com o garfo e acha muita graça no
amarelo colorindo pão presunto prato.
françoise faz origami com o guardanapo, monta
na bicicleta e acompanha a velocidade
dos carros, aperta botões um cinco três oito
senha correta e a porta se abre num plec,
françoise sobe as escadas chardon lagache
92 revestidas de carpete, papel de parede
creme, e despeja sacolas no sofá.
françoise sempre diz que teve um dia
e tanto.